Nascido Henrique de Souza Filho, no dia 05 de fevereiro do ano de Nosso Senhor 1944, na pequena cidade mineira de Ribeirão das Neves, Henriquinho como era chamado teve a mesma educação religiosa que seus irmãos e colegas recebiam naquela época, onde os melhores colégios eram regidos pela Igreja Católica. A didática desses colégios se valia do medo do fogo do inferno como punição para tudo que não estivesse dentro das normas e regras ensinadas pela igreja até então.
Durante 15 anos Henriquinho – não, ele ainda não era Henfil não – viveu em constantes confissões na capela do Colégio Arnaldo, podia ser a menor travessura de criança ou mesmo um “pensamento impuro”, e lá ia Henriquinho correndo para se confessar e se livrar das chamas do inferno, que o receberiam, caso não pedisse perdão a Deus. E vendo o demônio a lhe espreitar em cada sombra, aguardando o menor mau pensamento para se apoderar de seu corpo deixando-o pretinho, a ponto de não ser mais reconhecido nem pela própria mãe, tentava pelo menos garantir seu lugar no purgatório.
A história começou a mudar, quando dois frades dominicanos, Ratton e Patrício, amigos de seu irmão Betinho, começaram a freqüentar sua casa, e aos poucos conversando com os frades criaram a intimidade suficiente para conversas mais “ousadas” a respeito de como era o inferno. Para sua surpresa no inferno não havia fogo e nem lagos de lava e enxofre, o inferno era simplesmente a ausência de Deus e, chocado, descobriu também que a cegonha não existia. O choque foi tão grande que jurou jamais se casar, e o sexo para ele assumiu a proporção de uma violenta tragédia. Outra descoberta fascinante foi a de que nem todos os padres eram sisudos como os do Colégio Arnaldo, padres também passeavam, contavam piadas, andavam sem batina, cantavam músicas e até conversavam com as meninas! Outro susto veio quando lhe disseram que Deus ria, e não só ele, mas também Jesus, Nossa Senhora e os anjos também.
Agora as advertências quase fascistas dos padres do colégio sobre o fogo do inferno e de que “aqueles” frades eram não só subversivos, mas como eram também a encarnação de Lúcifer, não surtiram efeito em Henriquinho. A visão de uma nova igreja, menos repressiva e mais preocupada com a justiça social foi fator decisivo em seu futuro como cartunista, pois seus medos primitivos haviam se dissipado.
Foi a pedido de Betinho, que Lúcio Nunes arranjou para Henriquinho um emprego na revista Alterosa como revisor, mas Henriquinho era totalmente inábil para a função. A primeira edição da revista que passou pelo seu crivo de revisor saiu repleta de erros, o que fez o editor Roberto Drummond ir à cata do responsável por tantos erros, quando soube que seu “revisor” gastava a maior parte do tempo entretendo os colegas de trabalho com seus desenhos, mandou chamá-lo em sua sala, pois queria ele mesmo ver os tais desenhos que despertavam a atenção de seus funcionários.
E para a surpresa de Henriquinho, ao invés de ser despedido, foi promovido; Iria ser cartunista na Alterosa, e trabalharia no recém-formado departamento de pesquisas. Drummond ainda atacou em lhe dar um nome artístico –Henfil – que foi recebido a contragosto por Henriquinho, que somente o aceitou, mediante ameaça de perder o novo trabalho e que Betinho seria avisado de como ele perdera uma grande oportunidade por capricho.
Mas Drummond estava investindo no talento de Henfil, fornecia a ele revistas com o melhor do humor francês, e o trabalho no arquivo o punha obrigatoriamente em contato com as principais notícias do mundo.
Logo veio o pedido para que Henfil criasse um personagem fixo para suas tiras e cartuns, e foi então que em 25 de julho de 1964, nasciam os Fradinhos, poucos meses após o famigerado golpe militar dado em 31 de março do mesmo ano. Inicialmente Henfil baseou-se nos dois frades que tanto frequentaram a sua casa: Ratton era baixinho e gordinho, muito engraçado com cara de moleque, já Patrício era alto, magro, narigudo e mais sério. As primeiras tiras dos Fradinhos eram bem inocentes, de um humor bem sutil. Aos poucos a personalidade de cada um dos fradinhos foi-se consolidando, sendo um cada vez mais anárquico e o outro cada vez mais sério. Mas as tiras dos Fradinhos morreram logo com o fechamento da Alterosa.
Contratado pelo Diário de Minas, os Fradinhos renasceram umas quatro vezes no mesmo estilo anterior, até caírem novamente em hibernação.
Do Diário de Minas, Henfil foi para o Jornal dos Sports no Rio de Janeiro e pouco tempo depois em 1969 começou a colaborar com O Pasquim. Já em seus primeiros números, onde trouxe de volta os Fradinhos Cumprido e Baixim, algo neles estava diferente e já não eram aquela caricatura jocosa dos dois frades de sua infância. Os Fradinhos agora eram a voz de sua consciência, do Henfil antigo engessado pelos dogmas religiosos, e do Henfil anárquico disposto a demolir toda aquela paralisia social a qual vivera e ainda estava vigente em outras famílias. Coincidentemente nessa mesma época em que Henfil mudara seu humor e retomava os Fradinhos, os seus amigos frades estavam saindo do convento.
O Frade Baixim ou Fradim, era o porta voz da transgressão, batia em criança, perseguia cegos, jogava velhos e aleijados no chão, escarrava abertamente na Igreja, não perdoava ninguém, era totalmente contra todo tipo de hipocrisia, repressões, etiquetas. Henfil usou o humor negro para representar graficamente o que todos nós éramos. Enquanto as boas normas mandavam respeitar os idosos, os negros, os índios, os homossexuais, e os deficientes, nas “sombras” todos contavam piadas e debochavam deles, e ao fazer o leitor rir descaradamente daquele humor politicamente incorreto, mostrava a sua hipocrisia. Henfil não era preconceituoso ou cruel, ele apenas jogava abertamente ao sol o comportamento escondido e as pequenas maldades que todos nós temos. Já o Cumprido fazia o papel oposto, tentando “civilizar” o Baixim, ou mesmo ajuizá-lo. Mas em nome de quem? Da igreja? Da sociedade? Na verdade as pessoas agiam como o Cumprido, mas no fundo queriam ser como o Baixim.
E para obter esse humor, Henfil buscou material dentro de si, afinal ele fazia parte daquela geração. Em pleno governo militar sob a vigência da censura, Henfil produzia propositalmente tiras a mais e algumas delas bem mais agressivas, justamente para serem barradas pela censura, liberando as “mais mansas” para publicação. Além do humor crítico e feroz, os Fradinhos traziam também uma linguagem até então inédita na imprensa, de modo aberto e escancarado; eufemismos camuflados de palavrões conhecidos ou mesmo inventados estavam presentes nos diálogos, como safanagem, baralho, putzgrila, cacilda e o famoso gesto do top-top, que tornou-se a marca registrada do Fradim.
Logo Henfil publicou o Almanaque dos Fradinhos em p/b, formato tablóide trazendo um apanhado das primeiras tiras dos Fradinhos até algumas mais recentes. Mas a publicação sofreu alguns cortes da censura e após alguns anos quando foi republicada em formato prancha, teve todas as páginas publicadas na íntegra.
O sucesso do Almanaque e a receptividade do personagem nas páginas do Pasquim levaram Henfil a criar a revista do Fradim em 1973, reforçada pela presença do Capitão Zeferino, Bode Orelana e a Graúna.
Henfil estava com o joelho bem comprometido devido à hemofilia e, atormentado pela dor, partiu para tratamento médico em New York. Mudou-se para os Estados Unidos não somente pela saúde e – no auge do seu trabalho – ele queria tentar o mercado americano, o que dividiu opiniões entre colegas e amigos. Alguns ofereceram apoio e outros tentavam dissuadi-lo de tal empreitada, por considerarem o mercado americano como algo hermético e inacessível, taxaram-no de petulante por insistir em querer entrar no mercado norte-americano. Entretanto a dor falava mais alto que qualquer opinião.
Em New York, Henfil dividia seu tempo entre os hospitais, as aulas de inglês, o fornecimento de tiras e charges para o Pasquim, a revista do Fradim e o envio de originais para diversas publicações norte-americanas. Com a persistência típica de quem acredita realmente no seu trabalho, Henfil aos poucos ampliou o seu leque de contatos até conseguir chegar a UPS – Universal Press Syndicate. O editor norte-americano Jim Andrews adorou o Fradim e em consenso com seu sócio John McMeel, decidiram publicar os Fradinhos, rebatizados como The Mad Monks, um feito inédito para qualquer desenhista/cartunista brasileiro, até então nenhum de nossos artistas, conseguira chegar onde Henfil chegou. Mas isso foi o início do calvário editorial vivido por ele nos Estados Unidos.
Durante três dias na sede da UPS em Kansas City, Henfil trabalhou para adequar a sua arte dentro dos padrões para tirinhas de jornal, reforçou o traço deixando-o menos solto e aplicou retícula cinza nas batinas dos Fradinhos. Quando estava para embarcar no avião de volta a NY, Henfil recebeu um envelope contendo o contrato padrão do Syndicate, e a firme recomendação de que ele apenas assinasse após lê-lo atentamente com um advogado, mas foram necessários dois advogados!
Henfil discordou de alguns termos do contrato iniciando um desgastante embate entre as partes, onde – resumidamente – foram alterados os seguintes itens:
1 – Exclusividade: Todo o trabalho produzido deverá ser feito via Syndicate e somente com a concessão do mesmo. Henfil conseguiu isentar o Brasil desta cláusula.
2 – Todos os direitos de uso de imagem, exploração dos personagens, produções de peças gráficas, TV, cinema, teatro, publicação em outros países, etc.. Somente poderiam ser exercidos com a aprovação do cartunista, com direito a veto de qualquer proposta.
3 – Toda aparição pessoal do artista em rádio, TV e jornais deverá ser feita através do Syndicate, e artista não poderá recusar qualquer convite feito pelo Syndicate para entrevistas ou aparições. Henfil conseguiu deixar com que essa cláusula se referisse apenas as tirinhas dos The Mad Monks.
4 – Caso o Syndicate ache necessário, o mesmo poderá substituir o cartunista na produção das tiras. Henfil concordou, desde que ele aprovasse o novo artista.
5 – Tempo do contrato: 10 anos podendo se prorrogar por mais 10. Henfil conseguiu reduzir para oito anos podendo se prorrogar por mais sete.
Essas mudanças deixaram os empresários estarrecidos, até então os artistas discutiam margem de lucros no merchandising dos personagens e aumento do tempo de duração do contrato. Apenas Bill Waterson – criador de “Calvin e Haroldo” – décadas depois reinvindicou o veto ao merchandising de seus personagens. Henfil queria apenas produzir as suas tiras, ele não queria prostituir o personagem pelas lojas e prateleiras de supermercados, pois a personalidade dos Fradinhos eram dele, e ele recusava terminantemente a se prostituir.
Pediram a Henfil que começasse com tiras mais “leves” para que o público fosse aos poucos se acostumando, das primeiras 72 tiras produzidas apenas 17 foram “aprovadas”, as demais foram consideradas muito sofisticadas ou “doentes” demais. Henfil enviava para o Syndicate tiras que ele não teria coragem de enviar ao Pasquim de tão inocentes que eram, e mesmo assim começaram a adulterar os textos das tiras, para “suavizá-las” mais ainda. Nesse processo, o Fradim foi se apagando cada vez mais, e o Cumprido ganhava destaque, Henfil se sentia mutilado, pois era a persona atual dele que estava sendo censurada, mesmo em tiras copiadas dos tempos da revista Alterosa.
Em uma semana as tiras dos Fradinhos foram compradas por 10 jornais, estreando em 13 de novembro de 1974, e logo veio a reação dos leitores norte-americanos, que em massa pediam a retirada das tiras, sob a acusação de serem “antiamericanas”, “anti-Deus”, “doentes”, etc..
A polêmica foi tanta que o Chicago Tribune publicou um cupom para votação sobre a permanência ou não das tiras, foram 400 votos contra e apenas quatro a favor. Andrews se sentia embaraçado sem conseguir explicar como que o todo poderoso povo americano não conseguia entender o humor daquele brasileiro do terceiro mundo. A proposta de se criar uma nova tira com personagens mais “americanizados e engraçadinhos” foi rejeitada na hora por Henfil que acabou por dar a solução: cancelar o contrato, e assim foi feito.
Henfil que havia suspenso a revista do Fradim no número 06 para se dedicar exclusivamente ao Syndicate e ao Pasquim, decidira retomá-la ao voltar para o Brasil. A revista do Fradim trazia algumas mudanças: o formato prancha e as tiras ganharam um tom mais pessoal nas críticas. Temas como homossexualismo, morte, inferno, sexo, mulheres, repressão policial, traumas sexuais, velhice, etc, ganharam as páginas e os leitores. Produzir as tiras do Fradim exigia muito, afinal não eram meras tirinhas sarcásticas e divertidas, cada edição era uma parte do Henfil que se deitava no divã para todo o Brasil ler e analisar, consequentemente a periodicidade da revista era totalmente irregular. Já não havia mais a necessidade de chocar o leitor, pois este já havia se tornado cúmplice do autor. Um exemplo foi a tara que Henfil tinha por pés de mulheres, e ao colocar o Fradim em êxtase pedindo para ser pisado por uma mulher, a reação dos leitores foi imediata: muitos escreveram compartilhando o mesmo fetiche e leitoras ofereceram seus pés, com direito a fotos dos pezinhos descalços e calçados.
Tudo tem seu fim, e a revista do Fradim foi encerrada por definitivo na edição de número 31 em dezembro de 1980, porém em 1984 pela editora Record, Henfil traz os Fradinhos de volta em um livro: Fradim de Libertação – Henfil do Bofe, reproduzindo algumas tiras clássicas e trazendo muito material inédito. Neste livro Henfil zomba de tudo e de todos, provoca o Diabo e desafia Deus com o melhor do seu humor. Depois disso o Fradim não mais voltou às bancas e livrarias, todos os traumas, medos, conceitos e preconceitos já haviam sido expurgados, Henfil era agora um homem livre, para ser livre ele teve de transgredir todas as regras morais e sociais então vigentes, e o seu passaporte para tal transgressão foi tinta e papel na forma de dois frades, dois fradinhos…